segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O ARTESÃO- Interlúdios, parte 5





_Chovia naquela tarde de domingo! _Falo para os dois no corredor, enquanto observo o góblin empalhado na cúpula a minha frente. _ Eu tinha 46 anos naquela época. Calvo na parte de cima do crânio, mas com cabelos grisalhos escorridos nas laterais e atrás. As sobrancelhas sempre foram grandes e voltadas para cima, nariz pontudo e maças do rosto e queixo proeminentes. Naquele final de tarde chuvoso não dei importância para isto. Mas, na parte da noite, sim. Pois, a partir daquela noite, eu teria essa aparência para sempre.
Isso faz mais de 200 anos.
Eu estava na igreja. Trabalhava como restaurador. Adorava pintar anjos, concertar esculturas. Eu tinha uma habilidade incrível. Gostava de ficar sozinho na igreja e, como chovia muito naquele dia, eu sabia que ficaria sozinho. Poucas pessoas entraram naquele dia e, na parte da noite, somente eu, as velas, os pincéis e os anjos. Alguém os tinha pintado antes de mim, mas eu me sentia nobre com a possibilidade de renová-los. De eternizá-los. Meu trabalho não era muito conhecido, mas chamou a atenção de alguém.
Ele entrou à noite! A chuva castigou suas vestimentas, mas ele pareceu não se importar. Começamos a conversar. Perguntou-me sobre o prazer que eu sentia de poder manter para sempre as pinturas, os quadros, as esculturas. E sobre a frustração de ver a vida passar. A frustração de conseguir eternizar minha obra, mas não conseguir o mesmo comigo.
Respondi que nunca havia pensado naquilo. Mas, analisando bem, era uma surpreendente contradição. O dom de preservar objetos, por longos anos ou até mesmo séculos, e notar o desgaste natural e irreversível de mim mesmo. Dura realidade incoerente.
Ele disse que podia fazer algo em relação aquilo. Que se tratava de uma espécie peculiar de “restaurador”.  Fiquei assustado, num primeiro momento. Respondi que não queria nada dele e pedi para que fosse embora, pois eu tinha que continuar meu trabalho. Ele disse que eu não tinha opção. Que meu dom era importante demais para se perder pelas linhas dos anos.
Num ataque rápido e voraz, então, essas mesmas linhas dos anos, simplesmente, se estagnaram. E eu recebi a mesma eternidade de meus objetos retocados...


CONTINUA....

Nenhum comentário:

Postar um comentário