quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Imortal Kalymor: Interlúdio, Parte I - A Catedral.


 
“Quem diria que um dia eu estaria do outro lado do mundo? Quem diria que existiria o outro lado?” Lembro de ter ouvido este pensamento ecoando pelas paredes de meu apartamento, assim que ele cruzou a porta da frente. Encharcado pela forte chuva que caía naquela noite de carnaval, onde pelas ruas tomadas de foliões perseguia sorrateiro uma de minhas crias. Palavras simples em singelas frases, que certamente qualquer pessoa diria, sempre que chegasse a um lugar completamente novo. Mas, pronunciada por aquele ser peculiar, o sentido era muito, mas muito mais abrangente...
Uma busca frenética por uma vida não ocorrida. Um deus com o poder de gritar, mas que apenas sussurra. Um oceano de possibilidades, movido por uma simples poça. Estas seriam uma das definições mais plausíveis para Hans Kalymor. Um universo mensurável. Uma montanha com o ideal de uma simples pedra. Uma grandiosidade reduzida. Sim, reduzida, mas reduzida a quê? Reduzida por quê? Isto me assolou por um breve momento, mas, como poucas coisas neste mundo me intrigam, o instante logo passou. Deduzi, então, o que mantinha aquele pássaro preso ao ninho de seus medos. O que lhe prendia em sua incoerente inferioridade. Uma contradição, onde o mais sublime dos sentimentos fora capaz de marginalizar um homem. Duas facetas de um anseio, com extremos mais opostos que o céu e o inferno. Onde quem o tem, possui livre acesso a qualquer um deles...
E esse sentimento é, logicamente, o amor...
Lá estava ele então, a personificação do amor. Em sua forma mais doentia, mais destruída. Um homem, mais morto do que vivo, tanto em carne como em alma. Tão maravilhosamente perfeito para mim. Encantei-me também por seu apetite voraz para com as curiosidades distintas de meus aposentos. Cálices, criaturas empalhadas, livros. Quadros... Olhos que farejavam. Isto a eternidade lhe permitiu desenvolver com afinco. Talvez por isso contei-lhe todos meus segredos. E talvez por isso hoje ele detenha, simples e inteiramente, o conhecimento absoluto...
Então, depois de longos anos, evidentemente curtos para mim, vejo-o novamente. Desta vez saindo de uma catedral. Está próximo do amanhecer e minha condição não me permite ficar aqui à espera desse fenômeno. Eu até que poderia, mas é algo que não me agrada. A mesma capa, o mesmo caminhar arrastado. A mesma dor. Mas agora seus passos estão lentos e confusos, quase tímidos. Desta forma ele desce toda a escadaria. No final, se vira, fitando a catedral com olhos maravilhados de uma criança. E de longe eu ouço um “obrigado”. Seus ombros, então, não mais pesam. Sua dor se esvai como chuva em bueiro. E sinto sua alma, pela primeira vez, sorrir. Hans Kalymor, o filho que não tive, a cria que não me pertenceu, teria finalmente encontrado o fim de sua eterna busca? Leio seu pensamento novamente, assim como o fiz em meu apartamento há alguns anos. E descubro tudo o que ocorreu. Daria um excelente conto. A narrativa de uma eternidade em uma simples madrugada...
Este é apenas mais um dia trivial de nosso tempo. Na verdade, mais uma noite trivial. A cidade é Florianópolis, o lugar é a Catedral Metropolitana. Definir os acontecimentos desta noite não é tarefa fácil. A princípio um homem comum, atormentado como também um homem comum, deseja uma confissão. Expor a um padre seus pecados, na ânsia de que Deus possa estar ouvindo. Pecados todos que giram em torno do amor. Poderiam então, ou sequer deveriam, ser chamados pecados? Eis o amor, levando ao céu e ao inferno... a chave-mestra de dois distintos aposentos.
Continua...

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