sexta-feira, 25 de março de 2011

O Imortal Kalymor: DEUS, POR MALBERON. INTERLÚDIOS, PARTE 9

Caminhando arrastadamente, Malberon deixou a sala de sua “coleção”. Ainda ferido pelas imagens, continuei meus passos ao lado do vampiro, tomado de uma profunda consternação por aquelas espécies. Senti-me um infeliz sobrevivente de um passado remoto, infeliz, pois sabia, agora, que não pertencia ao mundo que deveria ser o real e, sim, a uma imitação vil. Eles todos, presos em suas redomas de vidro, gritavam para mim como crianças perdidas, almas escondidas e impedidas da chance de viverem. Quase tapei meus ouvidos, pois seus chamados melancólicos eram insuportáveis. Em minha vergonha de estar ali, e de não estar ali com eles, repousei e os calei na frieza de meu ser amorfo, indo para outra sala da morada do vampiro, abandonando-os, desse modo, sob o silêncio que minha maldade permitia. Pois eu, invariavelmente, haveria de ser um vampiro, mesmo que talvez um tipo seleto, visto minha condição, porque eu estava livre e os observava da mesma forma que meu anfitrião. Já não sabia se o sorriso amarelado de Malberon provinha mesmo de sua face ou, talvez, da minha. Deixei-os, então, como o monstro que eu me tornara, convicto de que as cúpulas eram o lugar certo e não havia uma à minha espera.
A sala que adentramos, no novo aposento, era uma biblioteca. A luz, agora, era um pouco mais forte e exaltava uma impressão exótica do lugar, composto por pilares de madeira enegrecida, com frisos e vãos robustamente moldados, e paredes alaranjadas que seguiam o mesmo padrão. Livros antigos, grande parte deles manuscritos, dividiam as estantes com a poeira, aparentemente nunca tirada. Meus dedos coçaram como um esfomeado à frente de um banquete. Numa passada rápida com os olhos e um dedilhar quase furioso em folhas que pareciam me evocar, encantei-me, de imediato, pelo acervo. Ele continha, além de vestígios históricos nunca relatados e contos com páginas inacabadas de autores com os quais a humanidade não teve contato, também vastas obras sobre magia e ocultismo. Minha atenção foi completa, e quase esqueci do asco da sala anterior, pois uma imensidão de conhecimento e poder místico estava à mercê de minha ânsia. Malberon caminhava à minha frente, por vezes virando a cabeça para o lado, de modo a me olhar e observar a reação que eu estava tendo. Um tamborilar de desejo açoitava minha mente, pois havia séculos literaturas como aquelas tinham se perdido na destruição do passar de eras. Conhecimento repreendido, enclausurado pelo querer de Malberon.
Titubeante, tanto quanto estava no corredor das cúpulas, ou talvez mais, balbuciei, ainda estarrecido pela oportunidade do momento:

_O que eu poderia aprender com você? Aonde chegaria em minha evolução? Vendo o que vi hoje é fácil contestar a razão, pois não exagero em dizer que o mundo inteiro se limita às paredes de sua morada.

_Quão poderoso você seria com estas informações? Se pudesse ler tudo que está nestas estantes, tornar-se-ia uma ameaça para mim? _Olhou-me de forma veemente, convicto de que a indagação não necessitava de resposta, pois fora feita como uma intimidação.

A cena entre nós era indescritível. Dois inimigos jurados se digladiavam com olhares tão laminosos que o ato de qualquer luta seria desnecessário. Ficamos completamente imóveis. Eu segurava um livro aberto, enquanto o vampiro, como se estivesse meditando, juntava, na altura da cintura, a ponta dos dedos delicados. Nos segundos de nosso duelo impiedoso, quando nem o destino sabia o próximo passo e somente aguardava um mínimo gesto para uma reviravolta de acontecimentos, fechei o livro, fazendo o som nos interromper, ao mesmo tempo em que uma névoa fina de poeira acariciava minha face. Como um derrotado não explícito, talvez um desistente, optei por desviar o olhar e pôr o livro de volta na estante. Fugi da resposta, fugi da intimidação. Acovardei-me como faz um corvo disputando a carniça com uma hiena, para que pudesse, sem um confronto direto, aproveitar os restos de sua refeição. Alimentando-me do que ele permitisse.
Malberon entendeu, mas não sorriu. Estava acostumado com este tipo de reação. Deu as costas novamente e seguiu para um local onde as estantes estavam mais distantes umas das outras. Ali havia mesas e instrumentos musicais, como um piano, um violoncelo, e paredes ostentando grandes pinturas de diversos períodos da História. Num dos espaços entre as estantes, isolado e escondido, havia um quadro negro, desses de que se utilizam os professores em suas aulas. Passaria despercebido ante um “Picasso” ou um “DaVinci”, entre outros que ali, estúpida e encantadoramente havia, e chamavam toda a atenção para si. Mas trazia, escrito com giz, uma sentença que lembrava uma expressão matemática.






Talvez pela simplicidade do objeto, não condizente com a magnitude do lugar, voltei frações de segundo para a fórmula. Tempo suficiente para que tudo antes, o Cálice Sagrado, as espécies empalhadas, os livros preciosos e as obras de arte perdessem seu valor. E eu não mais desviasse meus sentidos...


CONTINUA....

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